Do desenvolvimento da dança teatral em Portugal no pós-25 de abril de 1974: circunstâncias, representações, encontros
Maria José Fazenda
Escola Superior de Dança, Instituto Politécnico de Lisboa, Portugal CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Polo ISCTE-IUL, Portugal
DOI: https://doi.org/10.31492/2184-2043.RILP2020.38/pp.101-127
Resumo
A dança teatral em Portugal atesta um assinalável desenvolvimento a seguir à Revolução de Abril de 1974. Do novo panorama destacam-se três aspetos: a redefinição e a expansão do repertório do Ballet Gulbenkian, de que procedem a visibilidade que adquire o coreógrafo Vasco Wellenkamp e a emergência da linguagem refor- madora de Olga Roriz; a criação da Companhia Nacional de Bailado; e a diversificação das orientações estéticas e dos projetos artísticos independentes, no âmbito da então designada Nova Dança Portuguesa. Neste trabalho, o meu objetivo é perceber, de forma encadeada, que condições favorecem o crescimento da dança em Portugal, a diversificação de projetos e estéticas, e que relações entre as pessoas os instigam ou propiciam, nos termos em que a articulação destes três domínios – condições, representações e relações – é formulada pelo cientista social Steven Vertovec (2015), no âmbito dos estudos sobre a diversidade.
Palavras-chave: dança contemporânea; Portugal; condições; representações; encontros.
Contudo, e não obstante as meritórias iniciativas individuais, faltavam estruturas artísticas consistentes que suportassem um crescimento da dança e políticas culturais que promovessem a liberdade da criação artística e assegurassem a continuidade de projetos. Com efeito, é após a instituição do regime democrático em Portugal e a estabilização de uma vivência em liberdade que a dança se desenvolve no país e as expressões desta forma de cultura se diversificam.
A historiografia da dança em Portugal encontra-se documentada em trabalhos de Sasportes (1970, 1991), cujas investigações têm procurado quer os sinais mais ténues ou socialmente circunscritos quer as manifestações mais relevantes do interesse dos portugueses pela dança, ao longo dos séculos, e de Ribeiro (1991, 1994) cujos interesses se debruçam essencialmente sobre o período mais recente, designadamente a partir de 1965, data da criação daquela que viria a ser uma das mais relevantes estruturas profissionais da dança em Portugal, o BG, até à emergência da NDP, no início da década de 1990, para além de outras fontes que amiúde mencionarei. Mais tarde, adotando uma perspetiva cultural e socialmente contextualizada interessar-me-ia pelos percursos, universos temáticos e idiomas coreográficos de alguns dos coreógrafos portugueses (Fazenda, 1997, 2012/2007, 2014). Neste trabalho, o meu objetivo é perceber, de forma encadeada, que condições favorecem o crescimento da dança em Portugal, a diversificação de projetos e estéticas, e quais os movimentos das pessoas e as relações que os instigam ou propiciam, nos termos em que a articulação destes domínios é formulada pelo cientista social Steven Vertovec (2015), no âmbito dos estudos sobre a diversidade.
Na análise de fenómenos decorrentes de dinâmicas políticas e socioculturais, como os mecanismos de diferenciação social, Vertovec identifica três domínios que devem ser levados em conta: as configurações, as representações e os encontros. As configurações referem-se às “structural conditions within which people carry out their lives”, como a política, a economia, a geografia e outras disposições que sustentam ou impedem a ação dos indivíduos; as representações re-portam-se “to the conceptual ordering of the social world”, e incluem idiomas e regimes ideológicos, por exemplo; os encontros dizem respeito a “actual human interactions”, o que envolve uma série de contactos, dos mais fugazes às relações mais sustentadas (Vertovec, 2015, p. 15). Segundo o antropólogo, mesmo que o foco de uma pesquisa envolva fenómenos em apenas um dos domínio, os efeitos condicionantes dos outros dois devem ser tomados em conta.
Considero que a “tríade conceptual” proposta por Vertovec é igualmente útil numa investigação que pretenda identificar as características de corpos de práticas culturais, como a da presente análise. Conciliando a metodologia analítica de Vertovec e uma análise retrospetiva de eventos ocorridos num passado recente, mas cuja distância temporal é suficiente para prosseguir, na atualidade, uma maior objetividade na análise, veremos como as políticas nacionais e locais em Portugal, o contexto sociocultural e artístico em que os criadores desenvolvem o seu trabalho, os contactos e as interações que os profissionais estabelecem, quer nacional quer internacionalmente, e as linguagens artísticas usadas e os temas tratados nas obras se afetam, determinam ou influenciam mutuamente2.
Nesta síntese analítica sobre o desenvolvimento da dança em Portugal deter-me-ei sobre os projetos artísticos e as orientações estéticas mais relevantes que diversificam o panorama da dança no país após a Revolução dos Cravos, uma dança cujo crescimento se deve simultaneamente a políticas culturais internas e externas favoráveis, ao empenho de indivíduos com um capital cultural e uma posição institucional propiciadores, à mobilização coletiva de grupos profissionais, ao contacto dos agentes artísticos com o mundo artístico internacional, e à partilhada conceção de que a dança é uma arte aberta à diversidade de propostas e à expressão da singularidade das visões do mundo. O período considerado decorre de 1977, data da criação da Companhia Nacional de Bailado, até 1996, ano em que o Ministério da Cultura define uma política de apoios às artes do espetáculo, em geral, e à dança, em particular, de iniciativa não governamental, no quadro do XIII Governo Constitucional de Portugal.
__________________
- Designo por dança teatral uma performance deliberadamente apresentada por um grupo de intérpretes selecionados de acordo com expectativas definidas por motivações artísticas e pressupostos estéticos determinados perante um outro grupo de pessoas e cujo contexto de ocorrência é delimitado pela moldura que recorta o espaço em que o evento se concretiza e o separa dos outros eventos do mundo, mas que a ele se reporta de forma reflexiva. Sobre a distinção entre dança teatral, dança social e dança ritual, v. Fazenda (2012/2007).
- A distância temporal torna-me mais consciente da eventual subjetividade de apreciações que em outros trabalhos poderei ter tecido, dada a excessiva proximidade e o envolvimento enquanto agente com esta realidade, primeiro na qualidade de bailarina – fui aluna da Escola de Dança do Conservatório Nacional, dancei com Paula Massano e Madalena Victorino – e, depois, como crítica de dança do jornal Público, entre 1992 e 2001.
O Ballet Gulbenkian (BG), companhia que desenvolve atividade ao longo de quarenta anos sucessivos, será uma das mais importantes estruturas da dança em Portugal, reconhecida nacional e internacionalmente pela excelência dos seus bailarinos e pela qualidade dos seus coreógrafos residentes. A história do BG remonta ao Grupo Experimental de Ballet (GEB) do Centro Português de Bailado, constituído por um pequeno grupo de bailarinos, em 1961, sob a direção artística do inglês Norman Dixon (n.1926), projeto então subsidiado pela Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) que, contudo, só verá a continuidade e a expansão do seu trabalho asseguradas quando a FCG assume a sua gestão artística e administrativa.
Sob a tutela do Serviço de Música da FCG, presidido por Maria Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989), personalidade cujos interesses culturais, cargos de relevância ocupados, contactos internacionais que estabelece e credibilidade que conquista usará em prol do desenvolvimento da dança, é então criado, em 1965, o Grupo Gulbenkian de Bailado (GGB), sob a direção artística do escocês Walter Gore (1910-1979), ex-bailarino do Ballet Rambert e fundador do London Ballet. O grupo apresenta várias obras do seu diretor artístico, a par de criações dos portugueses Águeda Sena (n. 1927) e Carlos Trincheiras (1937-1993).
Sucede a Gore, em 1970, o croata Milko Sparemblek (n. 1928), ex-bailarino do Ballet du XXe Siècle, fundado em Bruxelas por Maurice Béjart, que em muito contribuirá para o crescimento técnico e artístico do GGB. Durante a sua direção, coreografa regularmente para a companhia, onde também marcam presença os portugueses Armando Jorge e Fernando Lima (1928-2005), e os norte-americanos Lar Lubovitch (n. 1943) e Paul Sanasardo (n. 1928). Lubovitch cria para a companhia portuguesa a extraordinariamente bem recebida obra, quer pela crítica quer pelo público, Algumas reacções de algumas pessoas algures no tempo ao ouvirem a notícia da vinda do Messias, a qual foi dançada cerca de sessenta vezes, desde a estreia, em fevereiro de 1971, até 1981. De Sanasardo é estreada, em fevereiro de 1974, a coreografia O Baile dos Mendigos, dançada, até 1980, cerca de quarenta vezes.
Na sequência de antagonismos internos iniciados em 1973, agudizados em 1974, com uma greve dos bailarinos, Sparemblek seria afastado em abril de 1975, sob a “acusação de autoritarismo” (Ribeiro, 1991, p. 61). Por seu lado, o diretor artístico denunciara a conturbação vivida no interior do grupo e acusara-o de estar indirigível.
Em 1975, o GGB é um microcosmo do país. As questões políticas e os temas laborais atravessam os debates e a ação dos trabalhadores em todos os setores, de que decorrem saneamentos e alguma instabilidade institucional. Após o afastamento de Sparemblek, a orientação artística do GGB é assumida por uma comissão de trabalhadores eleita e integrada pelos seus próprios trabalhadores — bailarinos, professores e coreógrafos (cf. Leça, 1991, 64).
Jorge Salavisa, que em 1975 abandonara a sua atividade como bailarino, mas mantinha-se no estrangeiro como professor, regressa a Portugal para desempenhar funções como maître de ballet (mestre de bailado) da companhia, entretanto apelidada como Ballet Gulbenkian. Salavisa inicia atividade no BG em janeiro de 1977. A Administração da FCG atribui-lhe a responsabilidade das aulas e dos ensaios, para além de funções de colaboração na programação das temporadas, constituição dos elencos e contração dos bailarinos e coreógrafos. Em setembro desse mesmo ano é extinta a comissão artística do BG e Salavisa toma posse como diretor artístico da companhia.
O primeiro português a dirigir o BG terá um papel extremamente importante e decisivo no desenvolvimento do grupo, assumindo um indubitável papel reformador, quer ao nível da definição do seu repertório, definindo uma linha contemporânea para uma companhia que alternava entre as criações modernas e outras de cariz clássico, quer ao nível da formação de bailarinos portugueses.
Segundo Ribeiro, “ao chegar a temporada de 1985/86 o Ballet Gulbenkian era uma Companhia estabilizada e definida” (1991, p. 65) e na temporada de 1989/90 o seu elenco é essencialmente constituído por bailarinos portugueses, uma conquista resultante do investimento que Salavisa fez na formação.
É também sob a direção de Salavisa que dois dos mais importantes coreógrafos portugueses do pós-25 de Abril, Vasco Wellenkamp e Olga Roriz, adquirem visibilidade pública, definindo duas marcantes facetas estilísticas da cena coreográfica portuguesa. Wellenkamp e Roriz contribuem indubitavelmente, em momentos diferentes e com estilos diferenciados, para a definição do perfil do BG. Segundo Leça (1991), o trabalho de Wellenkamp caracteriza-se por uma “expressão fundamentalmente lírica e apaixonada, e dotado de imensa musicalidade”, enquanto os traços coreográficos essenciais de Roriz são “o espírito de pesquisa, a exploração da violência cinética, a incorporação da estética minimalista-repetitiva, o acentuado pendor teatral, e por vezes o insólito relacionamento com a música” (p. 66).
O programa de fevereiro de 1984 do BG seria integralmente composto por obras dos dois coreógrafos portugueses, no seguinte alinhamento: Encontros (1982), de Roriz, Percursos (1981), de Wellenkamp, Lágrima (1983), de Roriz, Outono (1976), de Wellenkamp, e O Livro dos Seres Imaginários, a partir da obra homónima de Jorge Luis Borges, em estreia absoluta, de Roriz. Em maio desse mesmo ano, obras de Roriz e Wellenkamp seriam também as escolhidas para preencher a quase totalidade dos programas que a companhia dançou no conceituado Théâtre de la Ville, em Paris, onde seria calorosamente recebida pelo público e pela crítica. Salavisa tomaria idêntica opção, a de apresentar os trabalhos destes dois coreógrafos como aspetos distintivos do BG, em outras digressões internacionais da companhia, igualmente bem sucedidas4.
Vasco Wellenkamp, após ter iniciado os estudos em dança com Margarida de Abreu, em Lisboa, parte para Nova Iorque, para estudar na escola de Martha Graham e na de Merce Cunningham. No BG inicia a sua carreira de coreógrafo com a peça para grupo Concerto em Sol Maior (1975), com música de Maurice Ravel. Criador prolixo, Wellenkamp foi desenvolvendo na companhia um estilo próprio ao lado de muitos bailarinos que contribuiriam para a definição da sua linguagem e do seu estilo. Uma das bailarinas, a que o seu trabalho ficaria sempre associado, é Graça Barroso (1950-2013), para quem
Wellenkamp criou líricos e “românticos” duetos, entre os quais Outono (1976), em que, sobre a música de Gustav Mahler, Barroso dança com Carlos Caldas. No ano seguinte, em Noite de Quatro Luas (1977), com música de George Crumb, Graça Barroso dança com Ger Thomas, um par que reaparecerá em Tempo Suspenso (1979), sobre música de Edgar Varèse, e em Percursos (1981), com música de Heitor Villa-Lobos.
O dueto é aliás uma das figuras coreográficas mais características de Wellenkamp, em torno da qual o criador desenvolve um movimento fluído, leve, frequentemente projetado para o alto, esvoaçante, circular, ondulante, mas utilizando também o chão como base de deslocações deslizantes e contínuas, em perfeita sintonia com a música. No seu trabalho, a música é central. É ela que desencadeia o que, referindo-se ao coreógrafo, Lyzarro designou por “emoção lírica” (1996, p. 54). Sobre o papel da música nos seus trabalhos, Wellenkamp explica:
[…] há peças que à partida têm uma componente mais emotiva do que outras. Por exemplo, eu adoro música barroca, mas, emotivamente não me diz nada, rigorosamente nada. Tenho apenas o prazer musical, o que é outra emoção. Se oiço uma coisa lírica, sou capaz de me envolver pessoalmente com as minhas sensações, sou capaz de encontrar um sentido poético, lírico ou apaixonado, mais romântico ou mais agressivo e dramático. Há outras peças musicais que, nesse sentido, são de uma grande passividade e que nos deixam mais livres para pensar na plasticidade da coreografia (1998, p. 21).
O leque das escolhas musicais de Wellenkamp é diversificado. São exemplos Suite Lírica (1978), Cinco Poemas de Amor (1981), Estranhos Transeuntes (1983), Memória para Edith Piaf (1987), Keep Going (1988), Sinfonia dos Salmos (1992), com música, respetivamente, de Alban Berg, Richard Wagner, Steve Reich, Édith Piaf, Luciano Berio e Igor Stravinsky. É ainda de sublinhar o interesse de Wellenkamp em trabalhar sobre música portuguesa: Libera me (1977), contou com música especialmente composta por Constança Capdeville (1937-1992); Danças para uma Guitarra (1982), uma dança complexa, construída como uma cerrada filigrana, foi acompanhada, por sugestão do diretor artístico do BG (cf. Salavisa, pp. 211-213), por música de Carlos Paredes (1925-2004), tocada ao vivo pelo próprio compositor e guitarrista; Amaramália (1994), obra que convoca sentimentos de nostalgia e saudade, tão frequentemente presentes numa certa representação do “ser português”, foi interpretada sobre fados de Amália Rodrigues (1920-1999).
Wellenkamp abandona o BG em 1996, criando, três anos depois, o seu próprio agrupamento, a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC), na qual prosseguiu o desenvolvimento dos seus projetos artísticos em torno dos elementos que melhor caracterizam a sua estética: lirismo, musicalidade, mestria na construção de duetos. Em 2007, Vasco Wellenkamp assume a direção artística da Companhia Nacional de Bailado. Sai em 2010 e retoma a direção da CPBC.
Olga Roriz, que desde 1995 dirige também uma companhia de autor, a Olga Roriz Companhia de Dança, revelou-se como coreógrafa talentosa e inovadora, em 1983, com a coreografia Lágrima, realizada para o 10 .º Estúdio Coreográfico do BG5. O trabalho de Roriz introduz uma nova na linguagem nesta companhia e na dança em Portugal, como explica Ribeiro: “Lágrima foi uma coreografia que introduziu o espetáculo da violência sexual no interior de uma Companhia tradicionalmente lírica e com um reportório leve no que diz respeito ao tratamento de temas amorosos” (1991, p. 70). Roriz inseriu um novo vocabulário de movimento no BG, uma nova conceção dos géneros feminino e masculino, em que as representações das relações de harmoniosa dependência são substituídas por representações de relações onde também se exprimem o conflito e a contradição. Em Lágrima, sobre música de Nina Hagen, uma mulher (Elisa Ferreira) interage com três homens (Gagik Ismalian, José Grave e João Afonso) que disputam a sua atenção, perante a sua hesitação.
Nas coreografias de Roriz, os movimentos dos duetos, solos ou grupos são pesados, diretos, velozes, repentinos; predominam as linhas retas e os movimentos percutidos; bailarinos e bailarinas exprimem autonomia, determinação e voluntarismo. Disto são exemplos trabalhos marcantes como Três Canções de Nina Hagen (1984), Terra do Norte (1985), sobre uma recolha de Michel Giacometti de músicas de Trás-os-Montes e do Minho, e Treze Gestos de um Corpo (1987), uma obra dançada por um intenso grupo – de mulheres ou de homens –, de onde se vão, progressivamente, destacando solos, sobre a música poderosa de António Emiliano (n. 1959) e o cenário de Nuno Carinhas (n. 1954), o qual evoca o espaço íntimo de uma casa.
Quando abandonou o BG e criou a sua companhia, Roriz interessa-se sobretudo por desenvolver um trabalho de investigação com os bailarinos, fazendo-os participar ativamente nos processos criativos através de improvisações, secundarizando a intensa escrita coreográfica e o vigor cinético que caracterizaram as suas obras no período do BG6.
Vasco Wellemkamp e Olga Roriz, dois coreógrafos que Salavisa apoiaria e cujo trabalho fomentaria marcaram indubitavelmente o perfil artístico do BG, conferindo-lhe uma identidade própria, reconhecida no contexto nacional e internacional. Salavisa não só apoiava o seu trabalho como lhes propunha projetos específicos, especialmente a Wellenkamp.
Ainda antes da companhia da coreógrafa alemã Pina Bausch, cujo trabalho cunharia a expressão dança-teatro, ser vista ao vivo em Portugal, o BG cria duas obras inovadoras, à época, no contexto das artes do espetáculo em Portugal, que aliavam a dança e o teatro, a escrita coreográfica e o texto, o movimento e a voz: Só Longe Daqui (1984) – título extraído de um poema de Al Berto – , espetáculo subintitulado Uma Fantasia para Cisnes, Leopardos… e Outros Animais Domésticos, com encenação de Ricardo Pais (n. 1945) e coreografia de Vasco Wellenkamp; e Presley ao Piano (1988), com coreografia de Olga Roriz e encenação, novamente, de Ricardo Pais. No primeiro espetáculo, cuja criação é sugerida por Salavisa, destacava-se um solo da bailarina Graça Barroso que dizia um texto de Ricardo Pais, enquanto dançava A Morte do Cisne – citação de um excerto do solo criado em 1907 por Mikhail Fokine. No segundo espetáculo, a bailarina Vera Mantero cantava Love me tender, love me sweet / Never let me go e, segundo Mónica Guerreiro, “eram ditos vários textos, de forma mais ou menos fragmentária: um monólogo que Elvis improvisou num concerto em Las Vegas, transcrito por um biógrafo; excertos do livro de Priscila Presley (livremente traduzidos, montados e reescritos); versos de canções, também em português” (Guerreiro, 2008, p. 49).
Ainda sob a direção de Jorge Salavisa, que se prolongaria até 1996, foram apresentadas criações de outros coreógrafos portugueses, de que se destacou Ad Vitam (1990), de Paulo Ribeiro, com a vibrante música original de António Emiliano. De entre os coreógrafos estrangeiros modernos e neoclássicos convidados, assinala-se a remontagem de obras do britânico Christopher Bruce (n. 1945), do holandês Hans Van Manen (n. 1932), dos norte-americanos Lar Lubovitch e Louis Falco (1942-1993), do checo Jiří Kylián (n. 1947), do espanhol Nacho Duato (n. 1957), do norte-americano Paul Taylor (1930-2018) e do sueco Mats Ek (n. 1945), por ordem da sua estreia em Portugal.
Um diretor artístico competente, coreógrafos distintivos, bailarinos extraordinários e uma administração empenhada fizeram do BG uma referência cultural no país.
Ao longo dos anos, e até cessar atividade, em julho de 2005, o BG foi enriquecendo o seu repertório com trabalhos de criadores contemporâneos, tais como o israelita Itzik Galili (n. 1961) – de que se relembram as personagens bem-humoradas de Through Nana’s Eyes (Pelo Olhar de Naná) (1995), imaginadas para os próprios bailarinos do BG, sobre canções de Tom Waits, entre outras criações, – e os portugueses Clara Andermatt, João Fiadeiro, Vera Mantero e Rui Horta (n. 1957). Contam-se ainda remontagens de obras do israelita Ohad Naharin (n. 1952), do norte-americano, residente na Alemanha, Wiliam Forsythe (n. 1949), do francês Angelin Preljocaj (n. 1957) e da canadiana Marie Chouinard (n. 1955), a que se acrescentam as criações originais do suíço Gilles Jobin (n. 1964)7.
_____________
- Agradeço a Jorge Salavia, ex-diretor do BG e da CNB, e a João Costa, ex-bailarino do BG, o facto de me terem permitido aceder a fontes primárias constantes do seus arquivos pessoais relacionadas com a história do Ballet Gulbenkian.
- Nas digressões pelo país, realizadas anual e extensivamente, de Norte a Sul, não obstantes as más condições em que se encontrava a maioria os teatros pelo país fora, como lamenta Salavisa (2012, pp. 205-206), o BG privilegiava a apresentação das obras mais recentes, quer de portugueses quer de estrangeiros, que haviam marcado artisticamente a temporada.
- Os Estúdios Coreográficos eram espaços de experimentação coreográfica destinados aos bailarinos da companhia. Haviam sido criados em 1972 pelo anterior diretor, Sparemblek, onde Wellenkamp também se iniciara como coreógrafo. Salavisa retoma-os.
- Sobre o percurso e obra de Olga Roriz, v. Guerreiro (2008).
- Após a saída de Jorge Salavisa, em 1996, a brasileira Iracity Cardoso assumiria a direção do BG até 2003. Sucede-a Paulo Ribeiro, até julho de 2005, data em que o BG cessa atividade, por decisão do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian. A efetiva extinção da companhia concretiza-se em Agosto de 2006.
A CNB tem por missão divulgar o património da dança, mas também criar um novo reportório, sobretudo de criadores portugueses, e um centro de formação de bailarinos. Segundo Leça, a criação, pelo Estado, da CNB, “especialmente preparada para a apresentação do reportório clássico e neo-clássico” (1991, p. 65), deixaria o espaço para o BG se concentrar exclusivamente na dança contemporânea. “Com efeito, o Ballet Gulbenkian dirá o adeus definitivo ao clássico, na temporada de 77/78, ao levar à cena, pela quarta vez, o Quebra-Nozes na versão de Dolin”, conclui Leça (1991, p. 65).
A CNB é instalada no Teatro Nacional de São Carlos. Os seus fundadores são as bailarinas e professoras de dança Luna Andermatt (1926-2013), principal instigadora do projeto, e Vera Varela Cid (1937-2016), Armando Jorge, que que viria ser o primeiro diretor do grupo, e Pedro Risques Pereira (1923-1988). A CNB iniciou as suas atividades sob a égide da Direção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, passando a funcionar, a partir de 1980, junto da Direcção-Geral dos Espectáculos e do Direito de Autor, mas ainda sem regime jurídico definido. Em 1982 é colocada sob o regime de instalação. Entre as suas atribuições, definidas por lei, assinale-se: “Produzir bailados, sempre que possível pertencentes ao património coreógrafo e musical português […]; Produzir os bailados mais relevantes do património universal clássico ou contemporâneo […]; Criar e manter um centro de formação visando o aperfeiçoamento e profissionalização dos artistas e técnicos de bailado […]; Promover cursos de férias e seminários […] (Decreto-Lei 469/82).
Em 1985, a CNB é integrada no Teatro Nacional de S. Carlos E. P. Esta empresa pública é extinta em 1992 e a CNB readquire autonomia, restabelecendo-se, por um novo diploma, o previsto no Decreto-Lei 469/82. Porém, em 1993, a CNB, pessoa coletiva de direito público, é integrada no Instituto Português do Bailado e da Dança (IPBD), uma associação de direito privado, então constituída por escritura notarial, entre o Estado, através da Secretaria de Estado da Cultura, a Fundação das Descobertas e a sociedade proprietária do Teatro de São João, no Porto.
Não obstante as indefinições e incongruências de natureza jurídica que afetam a CNB, Armando Jorge prossegue os objetivos artísticos definidos para o grupo, dando um contributo importante para a sua consolidação, almejando fazer ombrear a CNB com as suas congéneres internacionais. Durante o período que a dirigiu, entre 1978 e 1993, introduziu no repertório da CNB obras importantes do património da dança, como Les Sylphides (1909), de Michel Fokine, La Sylphide, na versão de Auguste Bournonville, de 1936, Concerto Barocco (1941) e Apollo (1928), de George Balanchine, A Mesa Verde (1932), de Kurt Jooss, a versão de Giselle de Marius Petipa, estreada em 1884, a partir do original criado em 1841 por Jean Coralli e Jules Perrot, A Choreographic Offering (1964), de José Limón, entre outras; assinou a remontagem de grandes clássicos, como O Quebra-Nozes, em 1984, e O Lago dos Cisnes, em 1986; criou a obra Carmina Burana (1979), sobre música de Carl Orff; apresentou em estreia absoluta As Troianas (1985), de Olga Roriz; e empenhou-se no funcionamento de um centro de formação de bailarinos – A Escola Técnica de Profissionais de Bailado – e na organização de cursos livres de verão9.
Todavia, a CNB defrontava-se com dificuldades. A escassez de bailarinos de excelência, as produções demasiado onerosas para os meios de que dispunha e os contrassensos legislativos fragilizavam a companhia. A CNB seria “relançada”, para usar uma adequada expressão de Vargas (2000, p. 28)10 para se referir às novas circunstâncias propiciadores do desenvolvimento da estrutura, em 1996, sob a direção de Jorge Salavisa e uma tutela empenhada.
No quadro do XIII Governo Constitucional de Portugal, que toma posse em outubro de 1995, sob a chefia do socialista António Guterres, derrubando em eleições três governos sucessivos de direita liderados por Aníbal Cavaco de Silva, é reposto o Ministério da Cultura, departamento tutelado por Manuel Maria Carrilho (Ministro) e o musicólogo Rui Viera Nery (Secretário de Estado). Jorge Salavisa é nomeado para, junto da Secretaria de Estado da Cultura, dirigir o processo de reestruturação da CNB (Despacho no 41/96). Definem-se as bases legais que devolvem a autonomia à CNB, que a dotam das bases orgânicas essenciais para um funcionamento eficaz (Decreto-Lei no 245/97), e pelas quais se ultrapassa o subfinanciamento de que a estrutura padecia desde a sua integração no IPDB – um instituto cuja designação encerra uma descuidada redundância ou insciente distinção entre dança e bailado, como em determinado momento expus (Fazenda, 1994, p. 33) –, nomeadamente através do mecenato.
A CNB dá então início a um processo de reestruturação, de renovação do seu elenco artístico e de atualização do seu repertório de que se realça: a versão arrojada de A Bela Adormecida, de Marius Petipa, com coreografia adicional de Ted Brandsen, cenografia e figurinos de António Lagarto, em 1998; a estreia, no mesmo ano, de duas obras marcantes de William Forsythe, Artifact II (1984) e In The Middle, Somewhat Elevated (1988); a estreia absoluta de The Lisbon Piece (1998)11, de Anne Teresa De Keersmaeker, a primeira vez que a notável coreógrafa belga trabalha com bailarinas sobre sapatilhas de ponta; e a estreia de Agon (1957), uma obra-prima de George Balanchine. De salientar ainda o apoio que Salavisa dá aos mais jovens coreógrafos, e, nesse seguimento, a criação de trabalhos como Bomtempo (1998), sobre música de João Domingos Bomtempo, e Present Tense (1999), sobre música de Steve Reich, de David Fielding (1973-2008); e Llanto (1998) e Dançares (1999), sobre música de Fernando Lopes-Graça, de Rui Lopes Graça (n. 1964).
_____________
- Agradeço à Companhia Nacional de Bailado ter-me autorizado a consultar documentos importantes constantes do seu arquivo.
- Para uma historiografia da CNB, v. Santos (2001) e Guerreiro (2017).
- Carlos Vargas era à época Subdiretor da CNB.
- Sobre a peça e o contexto da sua criação, v. Fazenda (2018, pp. 166-167).
No panorama da dança portuguesa assiste-se, no final dos anos 1980 e princípio dos anos 1990, à emergência de uma nova vaga de criadores relativamente produtivos dentro do que a fragilidade das estruturas de criação, produção e apresentação de espetáculos permitiam. Faziam parte deste grupo de criadores, muito diferentes entre si, pertencentes a várias gerações e com diversos percursos artísticos, Paula Massano, Madalena Victorino, Paulo Ribeiro, Margarida Bettencourt, Clara Andermatt, João Fiadeiro, Vera Mantero e Francisco Camacho, entre outros.
Na altura, o crítico de dança António Pinto Ribeiro designou esta nova realidade por Nova Dança Portuguesa. O ensaísta acompanhou, sobretudo através dos seus textos publicados no semanário Expresso, entre 1987 e 1993, o trabalho dos novos criadores13. Foi neste semanário que Ribeiro concretizou uma escrita artística e teoricamente informada, que a nova dança, questionadora e esteticamente diversificada, exigia.
As ideias de dança destes artistas, que queriam trabalhar independentemente das companhias institucionalizadas, e as características dos seus trabalhos coreográficos aproximavam-nos da Nova Dança Europeia, um movimento que em França, na Bélgica, na Holanda e em Inglaterra emergira nos finais da década de 1970 e adquirira visibilidade internacional no início dos anos 1980.
A Nova Dança não era um género nem um estilo, mas antes um movimento que se definia, precisamente, pela ausência de um estilo determinante, prevalecendo a singularidade das propostas e valorizando-se a abordagem individual na composição dos materiais e na expressão das visões do mundo. Foi um movimento sobretudo europeu, contexto em que o ballet era, à época, ainda um género predominante14.
Nos anos 1980, a dança emergente era nova porque: 1) violava as regras, opondo-se tanto às práticas do ballet como às da modern dance; 2) preconizava uma nova atitude face ao corpo, o que se traduzia no interesse por várias atividades motoras – como as quotidianas ou os desportos – , o uso de novos métodos de treino físico, considerados mais vanguardistas do que as técnicas de dança tradicionais, como o contact improvisation, um género de movimento “inventado” nos anos 1970 por Steve Paxton, que não estabelecia diferenciação entre os géneros, a técnica de dança e os métodos de composição criados por Merce Cunningham, que eram a expressão de ideais de democracia, ou as técnicas orientais (meditação zen, ioga, tai chi), muito embora as técnicas mais convencionais (dança clássica e dança moderna) continuassem a ser utilizadas, só que de novas formas e ao serviço de diferentes propósitos; 3) estabelecia um novo interesse pelos elementos de teatralidade – o gesto a narrativa, o texto, a construção de personagens; 4) valorizava múltiplas fontes de inspiração criativa, nomeadamente a literatura e as artes plásticas; 5) adotava uma atitude crítica perante as instituições, designadamente em relação à sua forma de organização hierárquica.
Em Portugal, a FCG daria um importante contributo para a emergência da NDP, designadamente através do Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte (ACARTE), criado por Maria Madalena de Azeredo Perdigão em 1984, no recentemente inaugurado Centro de Arte Moderna (CAM), que, de forma indubitavelmente inédita, dá início a uma programação radical, regular e atenta ao que de mais vanguardista e inovador se ia fazendo pela Europa e pelos Estados Unidos da América15.
Tratou-se de um programação vasta, que ocupava o Grande Auditório da FCG, o Anfiteatro ao Ar Livre e a Sala Polivalente do CAM, organizada em ciclos, em que se incluíam os multidisciplinares Encontros Acarte cuja primeira edição data de 1987, programados com a assessoria de George Brugmans, então diretor do Festival Springdance, na Holanda, e de Roberto Cimetta, fundador e diretor do Inteatro, em Itália. Paralelamente à apresentação de espetáculos, o ACARTE promovia atividades de reflexão, como conferências, ou de carácter pedagógico, como workshops.
A programação do ACARTE inspirou, na prática e na teoria, bailarinos e jovens coreógrafos portugueses emergentes, contribuindo também para legitimar o trabalho que outros vinham já fazendo à margem das companhias de dança institucionalizadas, a saber, o BG e a CNB, e não só contribuiu para alterar o gosto do público como também para formar novos públicos para a dança.
De entre os espetáculos de dança programados pelo ACARTE, nos primeiros anos, contam-se: Rosas danst Rosas (1983), dança minimalista, assinada por aquela que virá a ser uma das mais influentes coreógrafas europeias, Anne Teresa De Keersmaeker, em fevereiro de 1987, num programa de Dança Europeia Contemporânea; What the Body does not Remember (1987), a obra de revelação do belga Wim Vandekeybus, e do seu trabalho em torno da velocidade e da queda; Les Louves et Pandora (1986), dança imbuída de teatralidade, do francês Jean-Claude Gallotta, nos Encontros Acarte, em setembro de 1987; Grain (1983), o contacto, pela primeira vez em Portugal, com o butô, através do par japonês Eiko & Koma, no programa intitulado Aspetos da Dança Contemporânea, em novembro de 1987; Hommage à Dore Hoyer /Afectos Humanos (1987), por Susanne Linke, representante da dança de expressão alemã, na Mostra de Dança Contemporânea Alemã, em maio de 1988; Canard Pékinois (1987), obra de relevação da dança-teatro do francês de origem sérvia Josef Nadj, nos Encontros Acarte, em 1998; Auf dem Gebirge hat man ein Geschrei gehört [Na Montanha Ouviu-se Um Grito] (1984), a obra, habitada por personagens perdidas, dilaceradas, com que o Tanztheater Wuppertal Pina Bausch se estreia em Portugal, nos Encontros Acarte, em setembro de 1989, entre muitos outros16.
Paralelamente à dança estrangeira, o ACARTE organizou programas exclusivamente de dança portuguesa. O primeiro foi a Mostra de Dança Portuguesa, em janeiro de 1989, onde se apresentaram: Rui Horta & Friends, um coletivo fundado em 1988, com a peça Linha; o Aparte, constituído por Margarida Bettencourt e João Natividade, ex-bailarinos do BG, com Con(m)certo Sentido; e o Dança Grupo, um agrupamento de dança independente fundado em 1977 por Elisa Worm (n. 1939), professora da Escola de Dança do Conservatório Nacional, e um grupo de alunos seus, que se estreia na Sala Polivalente do CAM com a coreografia Voos Domésticos. Seguiu-se a Mostra de Dança Contemporânea II, em fevereiro de 1990, no âmbito da qual são estreados os seguintes
trabalhos: Alto Contraste, do Dança Grupo; Divagações, um solo criado e interpretado por João Natividade; Jardim de Inverno, de Olga Roriz, Estranhezas, de Paula Massano, sobre música original de António Emiliano e figurinos de Nuno Carinhas; Interiores, de Rui Horta; e Mecanismos, de Joana Providência (n. 1965).
O ACARTE apresentou espetáculos, criou encontros e propiciou ligações, como destaca Mendo17:
O Acarte pôs-nos realmente no mundo. Proporcionou-nos descobertas emocionantes, encontros fundamentais, o acesso a redes informais – de organizadores, de críticos, de artistas – que já então estavam activas na Europa e nos Estados Unidos. E, talvez o mais importante de todos os encontros, o encontro de um público, minoritário que fosse. Quem viveu essa época não pode ter esquecido o clima de festa, a sensação empolgante de estar a viver algo de muito forte, uma sensação de pertença que nos unia, espectadores, organizadores, artistas, pensadores, em inesquecíveis dias e noites na Sala Polivalente, no Anfiteatro ao ar Livre, no Self-Service do Centro de Arte Moderna, no Grande Auditório e nos jardins da Fundação Gulbenkian. O ACARTE deu um contributo sem paralelo para a criação de um desejo de comunidade, de movimento. (2008)
O início da programação de dança do ACARTE, em 1984, e, no mesmo ano, a programação da Semana Internacional do Teatro Universitário, posteriormente Bienal Universitária de Coimbra (BUC), o primeiro evento a apresentar a NDP, designadamente a coreografia Solos de Paula Massano e Nuno Carinhas, foram, segundo Ribeiro, marcos na definição do novo espaço de criação e apresentação da NDP:
A dança que agora começava reivindicava-se de ser contemporânea da dança que na mesma altura se produzia noutros países da Europa como a França, a Inglaterra, a Itália, a Bélgica, a Holanda e a Espanha. Assumia definir-se pelas mesmas características da Nova Dança Europeia, das quais se destacam o ser esta dança uma dança rebelde e iconoclasta, uma dança inspirada numa ideia de maior acessibilidade de interpretação e de criação. Mas, principalmente, ser uma dança mestiçada de vários géneros e artes […] (1991, p.85).
Artisticamente, seria em 1981, data da apresentação de Na Palma da Mão a Lâmpada de Guernica, trabalho inspirado na obra de Picasso, designadamente em algumas das figuras das suas pinturas, coreografado por Elisa Worm e Paula Massano para o Dança Grupo, que se assistia ao “primeiro ensaio para a construção de uma nova linguagem coreográfica à margem da hegemonia do Ballet Gulbenkian e da sua estética” (Ribeiro, 1991, p. 80). Os criadores dos outros elementos deste espetáculo, “o cenógrafo e figurinista Nuno Carinhas, a compositora Constança Capdeville e o iluminador Orlando Worm – haveriam todos eles de constituir, anos mais tarde, um grupo de intervenientes fundamental na criação da Nova Dança Portuguesa”, continua Ribeiro (1991, p. 80).
Os trabalhos dos “fundadores” da NDP eram tão diversificados como diversos eram os seus percursos, as suas formações artísticas e opções estéticas, mas todos eles partilhavam o desejo de dar expressão à sua experiência e visão do mundo contemporâneo, através de uma linguagem própria, estabelecendo frequentemente colaborações com artistas de outras áreas, nomeadamente compositores. As suas escolhas eram tão diversas quanto as vias que a contemporaneidade lhes permitia explorar e descobrir.
Um dos aspetos que caracteriza a NDP, como referido atrás, é o interesse que os criadores atestam pelos elementos de teatralidade, ou seja, por um conjunto de dispositivos significativos, como os gestos, os tiques, a narrativa, o texto, a personagem. São exemplos alguns espetáculos de Paulo Ribeiro e Clara Andermatt. No trabalho de ambos, esta gestualidade é usada como forma de, a um mesmo tempo, descobrir e instituir um vocabulário de movimento próprio, representar emoções e, de forma caricatural, caracteres identificáveis, como estratégia para convocar tipos humanos cujos comportamentos e posturas são mais ou menos estereotipado. Por exemplo, em Cygne Renversé (1993), de Ribeiro, encontramos, através de um vasto reportório de gestos detalhados e tiques, referências humorísticas à imagem da bailarina clássica. Um outro exemplo do uso da gestualidade é a peça Cio Azul (1993), de Andermatt, com música original de João Lucas (n. 1964), em que predominam as representações do kitsh e do excesso por que se pode pautar a (in)comunicação e a expressão.
O criador Paulo Ribeiro interessa-se pelos comportamentos padronizados, pelos atavismos da cultura portuguesa, pela forma como os corpos se encontram marcados pelas tensões da repressão fascista. No tratamento coreográfico destas temáticas, a gestualidade torna-se central. Cada gesto contém uma carga dramática que decorre não tanto do significado que previamente lhe seja atribuído, mas da intensidade com que é realizado e da consequente distorção que o agrava: daí o excesso, os corpos a estrebuchar, a transbordar de energia. Em Sábado 2 (1995), por exemplo, peça em que Paulo Ribeiro faz uma crítica contundente à sociedade portuguesa do antigo regime, convocando as suas memórias sobre a política de vigilância punitiva e as sanções normalizadoras exercidas sobre os corpos durante o regime fascista em Portugal, os bailarinos, sobre a música original de Nuno Rebelo (n. 1960), exprimem as tensões criadas pela ambivalência do sentimentos que experienciam, entre os seus desejos individuais e a força repressora da sexualidade e das atitudes do corpo consideradas imorais que se impunha ao indivíduo do exterior.
A gestualidade também é um elemento crucial no trabalho de Vera Mantero. Uma das suas motivações tem sido a de expressar nas suas peças o seu descontentamento em relação ao vocabulário convencional da dança, em que foi treinada. Em As Quatro Fadinhas do Apocalipse (1989), peça criada no âmbito do 13o Estúdio Experimental de Coreografia do BG, companhia onde dançou, os gestos das bailarinas, que permaneciam sentadas no chão, eram, explica Mantero, citada em Fazenda (1999), uma “tentativa de explicar coisas às pessoas” (p. 6). No solo Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois (1991), as frequentes contrações dos músculos faciais e os gestos do dedo indicador, tocando e pressionando a parte superior do corpo, como se o procurasse perfurar, exprimem a dificuldade da bailarina em comunicar. Dois anos depois, em Sob (1993), quatro intérpretes, entre as quais a própria coreógrafa, recorrem à gestualidade para tentar exprimir a instabilidade, uma certa desadequação de si em relação ao mundo, o constrangimento social, inibidor da expressão da individualidade, que experienciam.
Um renovado interesse pela narrativa e pela criação de personagens e a inserção do texto no espetáculo da dança são outras características do trabalho dos protagonistas da NDP, particularmente de Francisco Camacho. No solo O Rei no Exílio (1991), com banda sonora de Carlos Zíngaro (n. 1948) o texto, que relata o fim do governo do último rei de Portugal, os figurinos e os elementos cenográficos, como o manto e o trono, constroem a personagem. Em Dom São Sebastião (1996), as figurações de D. Sebastião e de S. Sebastião são o pretexto para mostrar, nas palavras de Camacho, citado em Fazenda (1996) , “o peso desses dois mitos no corpo das pessoas, hoje” (p. 27). Na peça, construída a partir de uma ideia original e da dramaturgia do ensaísta e sociólogo Alexandre Melo, o objetivo não é representar o passado, mas dele convocar os sentimentos e as atitudes que ecoam na nossa contemporaneidade – a opressão do corpo, o saudosismo, uma certa inércia justificada na crença da vinda de um redentor, o sebastianismo. A literatura é um ponto de partida criativamente fértil para alguns dos protagonistas da NDP, em particular para Paula Massano. A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é o conto de onde saíram as personagens do espetáculo Bailarina do Mar (1990), que contou com música original de António Pinho Vargas (n. 1951); e a poesia de Fernando Pessoa e o fenómeno da heteronímia são a inspiração para Anteros o Amante Visual (1995), uma obra coreográfica em que os corpos dos quatro bailarinos são irrigados pela expressão das diferentes visões de si e do mundo de cada heterónimo. Para esta coreógrafa, as artes plásticas são também um ponto de partida para a composição coreográfica. Numa das secções de Estranhezas (1990), por exemplo, a artista inspira-se nas representações da figura humana na escultura angolana, nomeadamente a divisão do corpo em duas partes, a flexão dos joelhos e a firmeza dos pés, atestando também um interesse pelas obras da fase “primitivista” de Picasso.
Os trabalhos de cada um destes coreógrafos evidenciavam uma nova forma de utilizar o corpo como instrumento e modo de expressão, diferentes das propostas pelo ballet e pela modern dance, esta última introduzida em Portugal nos anos 1970 por proficientes professores18. Paula Massano, por exemplo, trabalha a partir do vocabulário e dos métodos de composição instituídos pelo norte-americano Merce Cunningham (1919-2009); Vera Mantero interessava-se pela improvisação; Francisco Camacho recorre, simultaneamente, à técnica de composição de Cunningham e aos métodos de composição de Pina Bausch (1940-2009); e João Fiadeiro utilizava o contact improvisation, como se evidenciava na peça Retrato da memória enquanto peso morto (1990).
A nova atitude face ao corpo preconizada pela NDP traduzia-se não só na utilização de novas e diversificadas técnicas de movimento, mas também na motivação dos coreógrafos em trabalhar com intérpretes que não tivessem necessariamente adquirido uma formação em dança. O objetivo era o de recrutar “personalidades”, “individualidades”, e não necessariamente bailarinos. Francisco Camacho, Vera Mantero e João Fiadeiro, por exemplo, convidariam para as suas peças atores e outros intérpretes não bailarinos.
Madalena Vitorino faria da livre participação de todos na dança a marca distintiva do seu trabalho. Desde o início da década de 1980 que dirigia um atelier coreográfico, no Ateneu Comercial de Lisboa, frequentado por pessoas com as mais diversas profissões (maioritariamente não profissionais em dança) e com várias idades. O princípio que governava a participação nestes ateliers era o da plena acessibilidade à dança, e quer trabalhasse com pessoas sem formação em dança quer com bailarinos, era sempre o interesse pelo sujeito-intérprete e pela individualidade das fisicalidades que a motivava. A partir de 1988, Victorino expõe publicamente os trabalhos coreográficos realizados nos ateliers. Ribeiro, que acompanhou o trabalho de Victorino desde o seu início “público”, refere que a conceção de corpo desta criadora assenta na ideia de que “todo o corpo contém nele, pela sua diferença e pela sua especificidade de peso, volume e energia, um potencial próprio para produzir movimentos e gestos, capazes de se constituírem em matéria coreográfica” (1994, p. 139). No trabalho Madeira, Matéria, Materiais pretexto para
uma ideia de corpo (1989), por exemplo, Victorino colocava lado a lado dois santos de roca em madeira, o corpo de uma bailarina e o de um engenheiro sem um treino convencional em dança.
Uma outra característica dos trabalhos de Madalena Victorino, inédita no contexto português da altura, residia no facto de a composição coreográfica partir de um lugar, de um espaço, na maioria das vezes não convencional. A configuração física do lugar, o seu uso, a sua funcionalidade e as associações simbólicas que suscita constituíam, para Victorino, motivos para exploração coreográfica. São exemplos: a quinta (Quinta Maria Gil) onde foi dançado o trabalho Queda num Lugar Imaginado (1988); a Torrefacção Lusitana, em Lisboa, que acolheu a dança Torrefacção (1990); a vivenda devoluta na zona do Restelo, em Lisboa, em cujas divisões se desenrolou O Terceiro Quarto (1991); o espaço aberto da Tapada da Ajuda, onde foi dançado o Diário de um Desaparecido (1992). A deslocação da dança para espaços não convencionais coloca também novas questões ao espectador que ao circular por eles participa, física e emocionalmente, e ao lado dos intérpretes, na sua recomposição. Dito de outro modo, Victorino não só reequaciona as formas de produção da dança, mas atende também à maneira como o espaço da sua representação afeta a forma como a dança é vista pelos espectadores.
Contribuíram ainda de forma determinante para a emergência da NDP os estudos que alguns destes coreógrafos e bailarinos portugueses fizeram na Europa e nos Estados Unidos da América, o que lhes proporcionou uma formação complementar essencial. Madalena Victorino formou-se no Laban Centre, em Londres. Vera Mantero, que tinha estudado com Anna Mascolo e dançara no BG, faz, seguidamente, estudos em teatro, voz e técnicas de release, em Nova Iorque. Francisco Camacho estudou nos centros de formação da CNB e do BG, após o que aprofunda os seus conhecimentos em técnicas de dança e em teatro também em Nova Iorque. João Fiadeiro inicia os seus estudos em dança na Escola de Dança Rui Horta, em Lisboa, prosseguindo-os em Nova Iorque e em Berlim. Fiadeiro é responsável pela introdução em Portugal do contact improvisation, mormente através da organização de workshops orientados pelo bailarino norte-americano Howard Sonenklar, em Lisboa, em 1991. Clara Andermatt iniciou os seus estudos com Luna Andermatt, em Lisboa, aprofundando-os no London Studio Centre. Paulo Ribeiro desenvolveu atividade como bailarino na Bélgica e em França. Paula Massano inicia os seus estudos com Anna Mascolo, em Lisboa, e, mais tarde, estuda em Nova Iorque, com Merce Cunningham. Deve-se a Massano e a Margarida Bettencourt a introdução em Portugal da técnica de dança e do método de composição desenvolvidos por Cunningham, designadamente através do projeto pedagógico e coreográfico Lisboa-Nova Iorque-Lisboa, desenvolvido em 1986 e 1987. Note-se que nem o contact improvisation nem a técnica Cunningham eram, à época, ainda ensinados nas escolas oficiais em Portugal.
De mencionar ainda a importância das companhias independentes enquanto espaços de experimentação para os jovens coreógrafos emergentes. Para além do Dança Grupo, referido atrás, cite-se também o Grupo Experimental de Dança Jazz, fundado em 1977 por Rui Horta, e a Companhia de Dança de Lisboa (CDL), criada em 1984 igualmente por Rui Horta, coreógrafo que a dirige artisticamente, até 1988. Clara Andermatt e João Fiadeiro dançam e coreografam para a CDL. Paulo Ribeiro, Rui Horta e Olga Roriz também criam para esta companhia. A norte, o Ballet Teatro Contemporâneo do Porto (atualmente Balleteatro), fundado em 1983, desempenhará nesta cidade um similar papel no desenvolvimento de uma comunidade de bailarinos. A estrutura acolhe também uma companhia de dança, lugar de experimentação coreográfica, nomeadamente das suas fundadoras, Né Barros e Isabel Barros.
_____________
- Retomo, reformulando e atualizando, a análise sobre a Nova Dança Portuguesa publicada no livro Dança Teatral: Ideias Experiências, Ações (Fazenda 2012/2007), entretanto esgotado.
- A maioria destes textos foi posteriormente compilada no livro Dança Temporariamente Contemporânea (Ribeiro, 1994
- A Alemanha foi, na Europa, uma exceção, pois desde o início do século XX e até à década de 1930, que a dança moderna, então designada “nova dança”, ou dança expressionista, se impôs como uma expressão do seu tempo. É também no início do século XX que na América, a “nova dança”, protagonizada por Isadora Duncan, se opõe de forma contundente e consequente ao ballet.
- Sobre uma análise do trabalho desenvolvido pelo Serviço ACARTE, v. Vieira (2016).
- Para uma cronologia completa dos artistas, grupo e companhias, na área da dança, que se apresentaram em Lisboa, ao longo do século XX, do início ao ano de 1993, v. Sasportes, Assis e Coelho (1994).
- Gil Mendo é um dos fundadores da Escola Superior de Dança Instituto Politécnico de Lisboa, em 1983, e do Forum Dança, em 1991, um centro de formação e de apoio à criação e divulgação nacional e internacional da NDP, através do Núcleo de Apoio Coreográfico.
- Para uma síntese sobre o desenvolvimento do ensino da dança em Portugal, v. Mendo (1991).
A socióloga Maria de Lourdes Lima dos Santos, no relatório sobre as políticas culturais entre 1985 e 1995, analisa a ação política do Estado para a dança, argumentando que durante a vigência dos X, XI e XII Governos Constitucionais de Portugal não se encontram objetivos programáticos para o setor:
Para encontrar alguma política para o sector durante os anos 80 e começos da década de 90 é necessário consultar o Relatório de Actividades da Secretaria de Estado da Cultura. O de 1985 indica que se procura proteger e estimular a atividade do bailado em Portugal, nomeadamente através de subsídios concedidos pela Direcção Geral de Acção Cultural a grupos e companhias de bailado independentes […] No entanto, logo a partir de 1986 a autonomia da dança cessa de ser reconhecida por aquele Relatório, visto que, para efeitos de publicitação de apoios e subsídios concedidos, a dança é aglomerada com o teatro e a ópera na categoria “Artes cénicas” […] Porém, já no final do período, em 1994, com a criação do Instituto Português do Bailado e da Dança e das principais orientações políticas que o hão-de reger na sua actividade, o Estado parece adoptar explicitamente uma posição de tendencial não intervenção […] (Santos, 1998, pp. 162-163)
Não obstante os apoios que, no período em análise, beneficiaram algumas estruturas, conforme dados apresentados pela autora, aqueles foram insuficientes e atribuídos de modo casuístico, de onde se conclui que “o estímulo à produção e difusão da dança entre 1985 e 1995 em nenhum momento constituiu prioridade da ação governativa” (Santos, 1998, p. 168).
No quadro de uma democracia estável e da integração de Portugal na Comunidade Europeia, eventos internacionais como o Europalia’91 – Portugal tiveram um papel importante no incremento e divulgação da NDP, pelos meios que pontualmente disponibilizaram para a produção de trabalhos, e na criação de parcerias internacionais. José Ribeiro da Fonte, Comissário de Música e Dança, convida Gil Mendo para programar a representação portuguesa da dança no festival de arte em Bruxelas. Mendo desejava “que esta primeira exposição internacional da Nova Dança Portuguesa se realizasse em condições profissionais normais, isto é, integrada numa programação internacional regular, e de acordo com a escolha do respectivo programador, e não isolada numa efeméride especial” (2008). Por influência de George Brugmans e António Pinto Ribeiro, tem como interlocutor na Bélgica Bruno Verbergt, então diretor do Festival Klapstuk, um importante evento de dança contemporânea, em Lovaina, onde serão apresentados trabalhos dos coreógrafos selecionados, sob a designação Os Novos Portugueses, a saber: O Rei no Exílio (1991), de Francisco Camacho, solo referido acima; Sustine et Abstine (1991), um dueto, de Joana Providência; Perhaps she could dance first and think afterwards, um solo improvisado, de Vera Mantero; A Ilha dos Amores, de Rui Nunes (n. 1966), peça criada a partir de Os Lusíadas; As Marias e os Papelinhos (1991), um dueto inspirado nas fotomontagens de Annah Hoch, de Aldara Bizarro (n. 1965), dançado pela própria coreógrafa e por Mónica Lapa, sobre música original de João Lucas; o solo Modo de Utilização (1991), de Paulo Ribeiro, que o coreógrafo estreara um ano antes na BUC, e Um solo para dois intérpretes (1991), que o coreógrafo João Fiadeiro interpreta com Nuno Bizarro19.
Eventos de âmbito nacional, como a Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura — a dança foi programada por Jorge Salavisa — , se bem que pontuais, seriam também importantes pela visibilidade que davam à dança portuguesa, pelos meios económicos e condições de produção que disponibilizariam para a criação e apresentação de trabalhos coreográficos, e pelas relações entre artistas e estruturas que possibilitavam. São produzidos grandes projetos, como o que Clara Andermatt e Paulo Ribeiro desenvolveram em Cabo Verde com bailarinos e músicos de ambas as nacionalidades, de que resultou o espetáculo Dançar Cabo Verde (1994), colaborações que se prolongam e desenvolvem em projetos posteriores de Andermatt, tais como Anomalias Magnéticas (1995), com música original do compositor cabo-verdiano Vasco Martins, ou Uma História da Dúvida (1998), obra interpretada por um grupo de bailarinos e músicos portugueses e cabo-verdianos.
Porém faltavam apoios estruturais, espaços de trabalho, de ensaio, de apresentação e formação adequados que permitissem aos artistas desenvolver um trabalho continuado. Em Lisboa, o Festival Danças na Cidade, organizado pela bailarina e artista politicamente ativa Mónica Lapa (1965-2001), cuja primeira edição data de 1993 (designado Alkantara, a partir de 2006), acolhe, produz e apresenta trabalhos dos novos criadores. Nas três primeiras edições foram apresentados espetáculos de dezasseis artistas portugueses que trabalhavam à margem das companhias de repertório — Paula Massano, Madalena Victorino, Paulo Ribeiro, Margarida Bettencourt, José Laginha (n. 1962), Clara Andermatt, Joana Providência, Aldara Bizarro, João Fiadeiro, Mónica Lapa, Vera Mantero, Amélia Bentes (n.1996), Rui Nunes, Marta Lapa (n. 1967), Francisco Camacho e Sílvia Real (n. 1969)20.
A reivindicação por parte dos artistas por melhores condições de trabalho ganha força com a constituição, a 27 de outubro de 1993, em Lisboa, da Associação Portuguesa para a Dança (APpD). O repto para que os profissionais se juntassem, discutissem a sua situação e definissem formas de intervenção pública é lançado um ano antes por Paula Massano e Francisco Camacho, numa carta dirigida a dezenas de pessoas, convidando-as a participar numa reunião, no dia 27 de abril de 1992, no espaço do teatro O Bando. Seguiram-se outras reuniões de onde resultou a redação e a subscrição do “Manifesto para a Dança”, assinado em agosto de 1992, em que se firma a existência de uma comunidade artística ativa e se denuncia a falta de infraestruturas e apoios necessários ao seu desenvolvimento, entre outros problemas sentidos pelo setor. O documento é distribuído pelos meios de comunicação social e por vários organismos oficiais, entre os quais a Secretaria de Estado da Cultura. Em abril de 1993, um grupo de trabalho, constituído pelas bailarinas Mónica Lapa, Ângela Guerreiro, Carlota Lagido, Paula Castro, Isabel Valverde e Cristina Santos, organiza a “Maratona para Dança”, no Maria Matos Teatro Municipal, cedido para o efeito pela Câmara Municipal de Lisboa, um evento que assume um carácter reivindicativo, onde, ao longo de doze horas, são apresentados trabalhos de vinte e dois criadores.
A decisão de criar a APpD resulta da necessidade de intervenção sentida pelos profissionais com vista a denunciar a assimetria existente entre a vitalidade da sua atividade e o alheamento das entidades governamentais perante este movimento. Entre 1993 e 1995, a Associação estabelece contactos com o IPBD, com o Gabinete de Relações Internacionais e Culturais da Secretaria de Estado da Cultura, com o Grupo Parlamentar do PS, com o Sindicato dos Trabalhadores do Espectáculo e elabora diversas comunicações públicas sobre temas relevantes para a classe. Num documento divulgado em fevereiro de 1996, quatro meses após a tomada de posse do XIII Governo Constitucional de Portugal, chefiado pelo socialista António Guterres, a APpD propõe-se “Continuar o diálogo começado com as instituições no sentido de intervir no delinear de uma política para a dança”.
Em junho de 1996, o então Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, convida o ex-Ministro da Cultura francês Jack Lang para fazer a abertura de uma série de debates que se desenrolariam com os vários setores das artes, sob a designação “Culturas em Diálogo”, uma iniciativa que visava, segundo se lia no texto do programa do evento assinado por Carrilho, “abrir um processo regular de questionamento e debate das políticas culturais”. A sessão dedicada à dança, intitulada “Posições da Dança” realizar-se-ia no dia 14 setembro, no Centro Cultural de Belém21. Na generalidade, os intervenientes reclamam a necessidade de definição de políticas que fossem desenvolvidas a longo prazo; realçam a disparidade existente entre as verbas disponibilizadas para o apoio à dança e o apoio às outras artes do espetáculo; reivindicam a publicitação das regras e critérios de atribuição de subsídios, de forma a tornar transparente a política do Ministério neste campo, entre outros aspetos. Na nova orgânica do Ministério da Cultura (MC) é criado o Instituto Português das Artes do Espectáculo, interlocutor das artes performativas independentes. Em dezembro de 1996 é publicado o primeiro regulamento dos apoios do MC à criação e produção coreográfica (Despacho Normativo no 51/96), que, para além de cometer a decisão do apoio a um júri, contempla a possibilidade de conceder apoios plurianuais a uma diversidade de estruturas, para o que, ao longo dos dois primeiros anos de governação, o MC aumentou progressivamente os meios disponíveis para a dança de iniciativa não governamental.
Um outro aspeto importante da ação do MC foi o estabelecimento de parcerias entre o governo central e o local que permitiram a implementação de relevantes projetos descentralizados, de que são exemplos a Companhia Paulo Ribeiro, residente do Teatro Viriato – CRAV (Centro de Artes do Espetáculo Viseu), desde 1999, e o trabalho de Rui Horta, em O Espaço do Tempo – Associação Cultural, no Convento da Saudação, em Montemor-o-Novo, a partir de 2000, ano em que o bailarino e coreógrafo regressa a Portugal após uma longa permanência na Alemanha.
Paralelamente, e para além da FCG, principal instituição durante muitos anos responsável pela principal atividade de criação e apresentação de dança contemporânea, programações determinantes ocupam os palcos da Culturgest, a partir de 1993, sob a responsabilidade de António Pinto Ribeiro; do Centro Cultural de Belém, também em Lisboa, edifício inaugurado em 1992, que desenvolve uma programação dinâmica e multidisciplinar, contando, de início, entre 1993 e 1995, com Gil Mendo como assessor para a dança, e, a partir de 1996, realizada por uma equipa liderada por Miguel Lobo Antunes; do Rivoli Teatro Municipal, reaberto em 1997, sob a direção de Isabel Alves Costa, no Porto; e do Teatro Viriato, a partir de 1998, sob a direção de Paulo Ribeiro, em Viseu, entre outros, pelo país. Em Almada, por exemplo, a Quinzena de Dança de Almada, um festival criado em 1992 por Maria Franco, com edições regulares desde então, define -se por ser um espaço de apresentação de dança contemporânea.
A designação Nova Dança Portuguesa foi progressivamente deixando de ser usada, quer por artistas, quer por público e críticos, para designar a pluralidade de propostas estéticas que configuravam a dança contemporânea em Portugal. O desuso, entendo, deve-se ao facto de o termo se referir a uma realidade temporal, cultural e política precisa, uma vez que, como defendi, está associada não a um género de dança, mas a um movimento com uma dupla faceta: de rutura estética, de instauração de uma pluralidade de estilos dialogantes com a cultura coreográfica internacional, mas também promotor de singularidades; de reivindicação política – com a constituição, em 1993, da APpD, que, através de várias ações, denunciaria a inexistência, à época, de uma política governamental para a dança.
Os primeiros vintes anos após a Revolução dos Cravos em Portugal são fundamentais para o desenvolvimento e consolidação da dança, uma arte que tardou a prosperar no país. A deposição do Estado Novo e a implementação de um regime democrático foram as condições políticas basilares. A adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1985, distendeu os limites de um país semiperiférico, inibido, durante muitos anos, de estabelecer relações com o exterior. Alguns artistas haviam emigrado. Quando regressaram, contribuíram para a definição dos níveis técnicos e opções estéticas a partir dos quais a dança deveria se executada e apreciada e para o estabelecimento de relações profícuas com os seus pares, quer interna quer externamente. O contexto sociocultural e político português enformou expressões, representações e temas coreográficos. O reconhecimento no estrangeiro da dança que se fazia em Portugal, sem o qual os espetáculos dificilmente circulariam, estabeleceu níveis de competência interpretativos. Ações de coreógrafos, organizações, políticas institucionais afetam-se mutuamente e evoluem em conjunto, ainda que as transformações em cada um dos domínios se processem em tempos que não são necessariamente os mesmos, como em vários momentos aconteceu.
Do ano 1996 à atualidade, o panorama da dança em Portugal revela novas dinâmicas e complexidades, do ponto de vista artístico, institucional e político, verificando-se, simultaneamente, uma expansão das atividades pedagógicas em dança e das práticas coreográficas, ao nível de todo o território, e retrações, a nível local, transformações velozes e desacelerações. O quadro que se evidencia exige investigações e análises situadas e delimitadas cujas problemáticas o presente texto não ambiciona enunciar. Serão trabalhos para o futuro.
_______________
- Para uma crítica ao espetáculo apresentado em Lovaina e uma reflexão sobre as condições em que estes criadores preparam os seus trabalhos, em Portugal, e a forma como estas os condicionam, v. Lepecki (1991).
- Sobre os percursos destes artistas, v. Assis (1995).
- A sessão “Posições da Dança” foi coordenada por mim, a convite do Ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho. Foi dividida em dois painéis. O primeiro, no período da manhã, subordinado ao tema “Posicionamentos da actividade coreográfica na contemporaneidade”, contou com intervenções de Jorge Salavisa (responsável pela Companhia Nacional de Bailado), Olga Roriz (coreógrafa e diretora da Olga Roriz Companhia de Dança), Né Barros (coreógrafa e membro da direção do Ballet Teatro Contemporâneo do Porto) e Francisco Camacho (coreógrafo e cofundador da estrutura de produção Eira, em 1993). Na sessão realizada no período da tarde, intitulada “Meios e infra-estruturas necessários às práticas e desenvolvimento da actividade coreográfica”, os oradores convidados foram Graça Bessa (membro da direção da CeDeCe – Companhia de Dança Contemporânea, criada em 1992, em Setúbal), Paulo Ribeiro (coreógrafo e diretor da Companhia Paulo Ribeiro), João Fiadeiro (coreógrafo e diretor da Companhia Re.Al, fundada em 1990) e Vera Mantero (coreógrafa).
Assis, M. (1995). Movimentos. Lisboa: Danças na Cidade.
Decreto-Lei no 460/82, de 26 de novembro. Diário da República n.o 274, Série I. Lisboa: Ministério da Cultura e Coordenação Científica.
Decreto-Lei no 245/97, de 18 de setembro. Diário da República no 216, I Série-A: Ministério da Cultura.
Despacho no 41/96, de 6 de junho. Diário da República no 157, II Série: Ministério da Cultura.
Despacho Normativo no 51/96, de 6 de dezembro. Diário da República no 282, I Série-B: Ministério da Cultura.
Fazenda, M. J. (1994, 26 de abril). Caminhos e atalhos de duas companhias. Público, 33. Fazenda, M. J. (1996, 5 de julho). A incorporação de dois mitos. Público, 27.
Fazenda, M. J. (Ed.). (1997). Movimentos presentes: Aspectos da dança independente em Portugal. Lisboa: Edições Cotovia e Danças na Cidade.
Fazenda, M. J. (1999, 26 de fevereiro). Vera Mantero (quase) total. Público. Artes e Ócios, pp. 6-7.
Fazenda, M. J. (2012). Dança teatral: Ideias, experiências, ações (2a ed. revista e atualizada).
Lisboa: Edições Colibri, Instituto Politécnico de Lisboa. (Trabalho originalmente publicado em 2007.)
Fazenda, M. J. (2014). Uma intensa presença do corpo: A dança em Portugal no contexto de uma democracia recente. Sinais de Cena, 22, pp. 84-86.
Fazenda, M. J. (2018). Da Vida da Obra Coreográfica. Lisboa: Imprensa Nacional.
Guerreiro, M. (2008). Olga Roriz. Lisboa: Assírio e Alvim.
Guerreiro, M. (2017). O Essencial sobre A Companhia Nacional de Bailado. Lisboa: Imprensa Nacional.
Leça, C. P. (1991). Ballet Gulbenkian: 25 anos. Colóquio Artes, 91: 61-67.
Lepecki, A. (1991, 16 de julho). Europália’91: Quatro para Klapstuk. Blitz. Disponível em http://sarma.be/docs/1102.
Lyzarro, M. (1996). O registo da emoção lírica: Considerações sobre o ballet de Wellenkamp.
Colóquio Artes, 111: 54-67.
Mendo, G. (1991). La démocratisation dans la danse portugaise depuis avril 1974. Alternatives Théâtrales, 39: 57-60.
Mendo, G. (1997). Agir em parceria: Algumas notas sobre o apoio do Ministério da Cultura à criação e produção coreográfica de iniciativa não governamental. In M. J. Fazenda (Ed.), Movimentos Presentes: Aspectos da Dança Independente em Portugal (pp. 129-131). Lisboa: Edições Cotovia e Danças na Cidade.
Mendo, G. (2008, 29 de abril). Testemunho. Comunicação apresentada no âmbito da Festa da Dança, Lx. Factory, Lisboa.
Ribeiro, A. P. (1991). 1965-1990: Vinte Anos de Ballet Gulbenkian e a Nova Dança Portuguesa. In J. Sasportes & A. P. Ribeiro, História da Dança (pp. 56-95). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
Ribeiro, A. P. (1994). Dança Temporariamente Contemporânea. Lisboa: Vega.
Salavisa, J. (2012). Dançar a Vida: Memórias. Lisboa: D. Quixote.
Santos, M. L. L. (Ed.). (1998). As Políticas Culturais em Portugal. Relatório Nacional. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais.
Santos, S. J. (2001). Companhia Nacional de Bailado: 25 anos. Lisboa: Companhia Nacional de Bailado.
Sasportes, J. (1970). História da dança em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Sasportes. J. (1991). Trajectória da dança teatral portuguesa. In J. Sasportes & A. P. Ribeiro, História da Dança (pp. 5-51). Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda. (Trabalho originalmente publicado em 1979.)
Sasportes, J., Assis, M., & Coelho, H. (1994). Dançaram em Lisboa: 1900-1994. Lisboa: Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura.
Vargas, C. (2000). Companhia Nacional de Bailado: uma companhia futurante. Adágio, 27: 24-32.
Vertovec, S. (2015). Introduction: Formulating diversity studies. In S. Vertovec (Ed.), Routled- ge International Handbook of Diversity Studies (pp. 1-20). London: Routledge.
Vieira, A. M. B. (2016). No Aleph para um olhar sobre o Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1984 e 1989 (Tese de Doutoramento). Universidade Nova de Lisboa, Portugal.
Wellenkamp, V. (1998). O Resto é o Futuro… Entrevista com o coreógrafo Vasco Wellenkamp (conduzida por Maria José Fazenda). Adágio, 20: 13-23.
Data receção: 11/11/2019
Data aprovação: 25/05/2020
Maria José Fazenda (ESD-IPL / CRIA ISCTE)
Ser Pós Moderno entre o Frágil e o Acarte
Ana Bigotte Vieira
www.revistapunkto.com/2014/09/ser-pos-moderno-entre-o-fragil-e-o_45.html
A análise do arquivo comporta, portanto, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente da nossa actualidade, é o contorno do tempo que rodeia o nosso presente, que se lhe sobrepõe e delimita a nossa alteridade; é o que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desdobra as suas possibilidades (e o domínio das suas possibilidades) a partir dos discursos que justamente acabam de ser nossos (…). Neste sentido vale para nós como diagnóstico. (…) O diagnóstico assim entendido não estabelece a comprovação da nossa identidade a partir do jogo das distinções. Estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos, a nossa história a diferença dos tempos, o nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é essa dispersão que somos e fazemos.”
Michel Foucault, Arqueologia do Saber
Em Janeiro de 2013 teve lugar no Centro de Arte Moderna a conferência O CAM na Cultura Portuguesa dos Anos 80, coordenada pelo Arquitecto Nuno Grande. O texto que se segue foi escrito para esta ocasião, evento invulgar tanto no que diz respeito à escolha do objecto como do seu tratamento. De facto, não apenas a reflexão histórica sobre aquilo a que se chama “os Anos 80” está em grande parte por fazer, como é pouco comum uma abordagem onde cultura, arte, sociedade e formas de vida – vistas como construções humanas, históricas, e não como dados naturais – são entendidas como inextrincáveis e passíveis de se darem a uma reflexão.
Ser Pós Moderno Entre o Frágil e o Acarte foi redigido para o painel com o mesmo nome e moderação de Isabel Carlos, no qual participaram Luís Serpa, Manuel Graça Dias, Jorge Figueira e Ana Bigotte Vieira.
Escrito para ser lido na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna em 2014, este texto, fruto de uma investigação de Doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa à época ainda em curso, procura interrogar este espaço na sua espessura histórica e função epocal. Dividido em duas partes, cada uma delas corresponde a uma ideia-chave. Na primeira, tratar-se-ia da ‘disjunção Anos Sessenta/Anos Oitenta’ proposta, entre outros, pelo historiador Luís Trindade [1]; já na segunda, para dar conta da acção de Madalena Perdigão, fundadora e primeira Directora do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, avançar-se-ia a noção de ‘Curadoria da Falta’.
Situado no agora e a pensar numa abertura de possibilidades para amanhã, trata-se de uma análise esboçada por alguém que nasceu em 1980 a tentar um diálogo com quem viveu essa época – não para a reconstruir mas, como diz Michel Foucault na epígrafe acima, para compreender o que no que somos hoje há de diferente do que deixámos de ser – e com isso contribuir para um possível diagnóstico daquilo que poderemos devir. É que na melhor das hipóteses, estando a História desta época em grande parte ainda por fazer, eventos como aquele, caso consigam resistir a uma tentação nostálgica [2], contribuem para a sua construção.
Entre
“Ser Pós-Moderno Entre o Frágil e o Acarte” : a proposta identitária que a afirmação que dá nome a este painel alberga “Ser pós moderno” coloca dois lugares da cidade de Lisboa em relação e fá-lo por via de uma circulação, de um entre. Os lugares são a discoteca Frágil, no Bairro Alto, aberta por Manuel Reis em 1982 e o Serviço ACARTE, Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Calouste Gulbenkian fundado por Maria Madalena de Azeredo Perdigão em 1984, um ano depois do Centro de Arte Moderna abrir, e nele sediado.
Como pano de fundo está uma época: os anos 80; um país: Portugal; e uma cidade: Lisboa. A identidade implícita na expressão Ser pós-moderno e a sua relação com a circulação entre estes dois lugares coloca-os em recorte, como se fosse pela circulação entre eles que esse Ser pós-moderno se produzisse. É importante notar que, na produção desse ser(-se) pós moderno (de quem? do país? da cidade? das pessoas?), estes dois lugares não serão os únicos nem serão estanques, antes pelo contrário – um recorte é sempre recortado de algo maior, algo onde se insere e com que se relaciona, nem que seja por meio de uma qualquer excepcionalidade (caso, por ex. da Fundação Calouste Gulbenkian, muitas vezes equiparada a um “oásis”, ou do Centro de Arte Moderna, o primeiro Museu de Arte Moderna no país), ou de uma aparente negação (caso, por ex., do Frágil e da “noite lisboeta”, sítio de extravagâncias).
Como refere Nuno Grande (GRANDE 2009), a década de 80 em Portugal, aparece como que cortada ao meio: por um lado, o pedido de auxílio financeiro ao FMI em 1983 e um crescente afastamento dos resquícios do pós-revolução; e, por outro, a eufórica adesão à União Europeia em 1985-1986 com as pressões de construção de uma “portugalidade” capaz de figurar numa mitificada Europa.
Mais do que procurarmos aqui uma definição estável de que ser pós-moderno possa ser esse que se é ou se quer ser, ou mesmo uma caracterização sociológica dos seus sujeitos (esses, que seriam pós-modernos), gostaríamos de tentar olhar para estes lugares, debruçando-nos em particular sobre o segundo, o ACARTE, enquanto espaços activos numa produção de processos de subjectivação em curso [3], reparando que parece haver características que os unem.
Complexo Exibicionário
Tony Bennet em The Birth of the Museum (BENNET 1995) – partindo de uma grelha foucauldiana onde justapõe a emergência simultânea, no século XIX, do museu e de espaços como a escola, as bibliotecas, as galerias, as arcadas, os grandes armazéns e as exposições internacionais – deu o nome de “complexo exibicionário” a um conjunto de instituições e de lugares que tinham por objectivo a auto-formação dos cidadãos dos recém laicizados estados. De acordo com Bennet, é justamente pela modelação dos modos como se circula entre e se age (n)estes lugares que uma série de rotinas e comportamentos sociais se constituem. Capaz de iluminar a relação entre espaços aparentemente tão opostos como os grandes armazéns, as feiras populares e as bibliotecas, a noção de “complexo exibicionário”, ao complicar as relações entre “alta” e “baixa” cultura, cultura “nacional” e cultura “internacional”, cultura “urbana” e cultura “rural” parece-nos particularmente útil para abordar o tal entre de que falámos a início.
Numa transposição, talvez precipitada (sem dúvida caricatural) desta noção para o contexto português dos anos 80 outros prováveis lugares, para além do Frágil e do ACARTE, apareceriam como possível parte integrante deste “complexo exibicionário”: espaços de consumo como o Amoreiras ou os grandes hipermercados, fenómenos como a emergência do chamado Rock Português ou a Moda Lisboa, o crescimento dos subúrbios, a massificação das férias ou um pouco mais tarde, o despontar de um certo tipo de escrita cultural, entre outros.
Um processo coreopolítico
É que Portugal entra para a Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, e os termos “Europa”, “Nação”, “Moderno” – e, em corolário, mesmo que em “curto-circuito” [4], como defende Boaventura de Sousa Santos (SANTOS 1984), ‘Pós Moderno’ – constituem nesta altura, e antes de mais, um apelo, o omnipresente slogan de um processo coreopolítico em curso, como sustenta André Lepecki em Dancing Without the Colonial Mirror: Modernity, Dance and nation in the works of Vera Mantero and Francisco Camacho (1985-1997). Um processo cujo passo, necessariamente demasiado veloz, acarreta consigo um esforço generalizado de amnésia: amnésia de um território entendido enquanto império ultramarino, da guerra colonial…do passado recente de Abril tanto quanto dos 48 anos de ditadura [5] …implicando, como qualquer transformação histórica abrupta, uma reconfiguração da experiência da corporalidade dos sujeitos, o que, longe de ser um processo pacífico é um processo atravessado e acompanhado por tensões e contradições várias, possíveis cristalizações identitárias e os seus devires minoritários. [6]
A reconfiguração da experiência da corporalidade
É neste terreno, o da reconfiguração desta experiência da corporalidade, que, como veremos, o ACARTE com os seus desfiles de corpos em performance (corpos nus, urbanos, cosmopolitas, multiculturais, exageradamente rápidos ou lentos); com os magotes de gente que acorria às suas iniciativas povoando os seus jardins, com os seus ciclos de eventos onde a participação e a discussão se tornam prática comum e a ida ao museu um hábito – será pródigo. O que se dá em simultâneo com a emergência daquela que viria a ser uma certa elite cultural a operar num Portugal já Europeu, numa Europa que, pela primeira vez, começa a incluir a cultura na sua agenda de prioridades e se organiza numa série de redes, onde os encontros e a troca de ideias se fazem cada vez mais essenciais. [7]
É eventualmente também nestes terrenos que o Frágil, como espaço social informal que é (e não obstante aquele que virá a ser o seu peso na organização formal da sociedade Lisboeta dos Anos Oitenta) [8] se recortará, ainda que de outra forma. A uni-los, estará a presença lúdica e expressiva de um corpo que dança, que é exposto, e que, agindo, relacionando-se, considerando-se objeto de experimentação e de elocução, se oferece performativamente em si como discurso e matéria: seja em espectáculo tout court, como no caso do ACARTE (e lembro-me, por exemplo, de “A vitória dos sentidos sobre o sentido”, título de uma crítica de José Ribeiro da Fonte aos primeiros Encontros ACARTE, em 1987) ou, como no caso do Frágil, pelo gozo de uma “noite lisboeta” que acontece cada vez mais num ambiente cosmopolita de festa com pista de dança e copo na mão, do que a uma mesa de café, e onde a aparência das roupas ou das maneiras pode ditar a possível entrada no estabelecimento.
À porta do Frágil
André Lepecki que, como muitos dos entrevistados, aponta o Frágil nos anos 80 como um espaço contemporâneo do ACARTE, explicava-me em conversa que parte da aventura do Frágil consistiria em entrar e ser (ou não) barrado – coisa que não se passava no ACARTE, onde toda a gente podia entrar, fazendo-me atentar nos modos como estas distribuições de pertença não deixam de ser importantes numa altura em que se queria “pertencer” e, por pertencer, passar a “ser” (“Europeu”, “contemporâneo”, “moderno”, “pós-moderno”).
Sob este ponto de vista, “Ser Pós-moderno” sinalizaria sempre uma cristalização identitária (e é bem sabido como pós-modernismo e neoliberalismo se interrelacionam), onde uma idealizada Europa cosmopolita, agindo por exclusão, marcaria o passo e ditaria o tom. O que parece insuficiente para dar conta do tal entre de que falámos a início, não se adequando quase ao ACARTE, sobretudo nos seus primeiros anos, durante a Direcção da Dr.ª Madalena Perdigão, onde cultura “nacional” e “internacional”, “experimental” e “mainstream”, “amadora” e “profissional”, “alta” e “baixa” conviviam lado a lado, enquadradas pelos muros dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian.
Lepecki, que em Dancing Without The Colonial Mirror…, traça as «interligações entre a emergência simultânea da dança contemporânea e de um novo tipo de subjectividade em determinado contexto político, económico e social – o de um país a sair de um passado de isolamento, colonialismo e subdesenvolvimento, e a investir na criação de uma nova identidade com a qual encontrar um lugar numa idealizada “modernidade europeia”» (LEPECKI 2001) interpela-nos então a olhar para o que fica de fora, neste caso específico temporalmente (“um país a sair de um passado”), ao mesmo tempo que atentamos no que está dentro, colocando-os em relação. [9]
Anos Oitenta/ Anos Sessenta
E de facto, entre os chamados Anos Oitenta e os chamados Anos Sessenta muita coisa muda. Em Portugal ainda mais.
A expressão Anos Sessenta (Sixties) sinaliza aqui não uma década específica mas sim um conceito (JAMESON 1984) que, começando a meio dos Anos Cinquenta prolonga-se até ao final dos Anos Setenta, abarcando a contestação à Guerra na Argélia e do Vietname, a vaga de descolonizações, o Maio de 68 e o movimento Hippie. Refere um período marcado por uma intensa experimentação social, existencial e artística de pendor emancipatório. Em Portugal, sem querer tirar importância às contestações estudantis e a toda a experimentação artística que se dá em finais dos Anos Sessenta – por ex., no campo do teatro ou da performance art (mas haverá outros…) –, poderá porventura dizer-se que os Anos Sessenta enquanto época de massificação cultural são marcados pelo período a seguir à revolução de Abril acontecendo em grande parte nos ‘Anos Setenta’. Assim, eles teriam massivamente lugar com o fim da censura, a participação de rua, as ocupações, o regresso das colónias…, estando intrinsecamente ligados a uma intensa experimentação social, menos talvez que existencial, experimentação existencial essa que assim se daria em grande parte já nos Anos Oitenta (Eighties) num ambiente cultural radicalmente diferente, marcado já pelo fim de Abril e pela entrada para a União Europeia – hipótese teórica apontada por Luís Trindade (TRINDADE 2010) e Rui Bebiano (BEBIANO 2010), que um olhar sobre os Anos Oitenta em Portugal me leva a partilhar, e as entrevistas que fiz em torno do ACARTE parecem corroborar.
Haveria assim, para além de um curto circuito entre modernidade e pós modernidade, como refere Boaventura de Sousa Santos, uma espécie de disjunção de um período (os Sixties, tais como descritos por Jameson para o panorama Norte Americano) por dois períodos (os Sixties e os Eighties), com ambientes culturais opostos – coisa que explicaria algumas das tensões, contradições, paradoxos mas também potencialidades e linhas de fuga que os Anos Oitenta em Portugal parecem conter, nomeadamente quando olhados a partir do momento presente e da actual conjuntura Europeia.
Mas debrucemo-nos agora especificamente sobre a acção do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian durante este período.
O ACARTE
“Fazia falta no panorama cultural português um Serviço voltado para a cultura contemporânea e/ou para o tratamento moderno de temas intemporais, assim como um Centro de Educação pela Arte dedicado às crianças. Tornava-se necessário assegurar ao Centro de Arte Moderna (…) a possibilidade de ser, não apenas um Museu na acepção restrita do termo mas também um Centro de Cultura.” [10]
Assim explica Madalena Perdigão as razões para a criação do ACARTE, um Serviço, dependente directamente da Presidência da Fundação, que afirmava não adoptar “conceitos estreitos de nacionalismo estéril” mas sim “abrir-se à itinerância no país e no estrangeiro”, tendo por vocação o apoio ao um experimentalismo que passava por um “incentivo à colaboração entre artistas de diferentes áreas para a criação multidisciplinar”.
Entre 1984 e 1989 passaram pelo ACARTE nomes como:
– no teatro: O Bando, Fernanda Lapa, Jan Fabre, Jorge Silva Melo, Jorge Listopad, Filipe La Féria, Ricardo Pais, Giorgio Barberio Corsetti, Tadeus Kantor e muitos outros…
– na dança: Susanne Linke, Rui Horta, Olga Roriz, W.Vandekeybus, Elisa Worm, Anne Teresa de Keersmaeker, Karine Saporta, Pina Bausch, Joseph Nadj, Reinhild Hoffman, Margarida Bettencourt, Vera Mantero, Paula Massano, Clara Andermatt e muitos outros…
– na performance art Wolf Vostell, Fernando Aguiar, Marina Abramovic/Ulay, Ulrich Rosenbach, Silvestre Pestana, Carlos Gordilho ou Miguel Yeco,…
– na música: Constança Capdeville/Grupo Colecviva, Jorge Peixinho /Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Carlos Zíngaro, Olga Pratz, Jorge Lima Barreto, Vítor Rua, Maurizio Kagel, Bow Gamelan, Pocket Opera, Derek Bailey/ Evan Parker, Touch Monkeys…
E ainda:
Bandas de Música no Anfiteatro ao ar livre onde acorreram bandas do país inteiro, Concertos à Hora do Almoço, onde se estrearam jovens intérpretes, “Músicas do Mundo” (conceito pouco em voga na altura), actividades complementares às exposições do CAM, e, claro, o incontornável Jazz em Agosto, que ainda hoje perdura e que começou em iniciativa do Serviço ACARTE. O Serviço ACARTE, para além de manter aberto em permanência um Centro de Arte Infantil, organizou ainda conferências, cursos, workshops, um regular jornal falado de actualidade literária, bem como uma série de cursos de Cinema de Animação, produzindo espectáculos e eventos, e co-programando, a partir de 1987, iniciativas internacionais como os Encontros ACARTE – Novo Teatro Dança da Europa (com o Springdance Festival da Holanda, e o Inteatro Polveriggi, de Itália. Muitas das suas iniciativas eram temáticas, agrupando em torno de um assunto uma série multidisciplinar de eventos. E colocando frequentemente o foco no performativo e na presença, no encontro e no diálogo, quase sempre o corpo se constituiu enquanto eixo central deste Serviço. [11]
Fazia falta, tornava-se necessário – diz-nos aquela que é uma figura central nas artes e na educação em Portugal sem que, porém, existam quase estudos sobre a sua acção.
Maria Madalena de Azeredo Perdigão
Combinando uma formação em música no Conservatório Nacional e em matemática na Universidade de Coimbra, Madalena Perdigão foi Directora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1957-1974 onde foi responsável pela criação da Orquestra Gulbenkian (1962), do Coro Gulbenkian (1964), do Ballet Gulbenkian (1965), e pela organização de 13 Festivais Gulbenkian de Música. Grande impulsionadora da Educação pela Arte, foi Presidente da Comissão Orientadora da Reforma do Conservatório Nacional entre 1971-1974 no âmbito da reforma Veiga Simão e, entre 1978 e 1984, Presidente do Grupo de Trabalho para a Reestruturação do Ensino Artístico bem como Assessora do Ministro da Educação, regressando à Fundação Calouste Gulbenkian em 1984 para a criação do ACARTE de que viria a ser Directora até ao final da sua vida, em 1989.
A criação deste Serviço corresponde assim à parte final de um longo percurso de criação de estruturas nas quais o conhecimento, a prática, e a fruição das artes são entendidos enquanto essenciais na formação humana, ou seja – e não obstante os tempos sejam já outros –, é por já existir uma Orquestra, um Ballet e um coro Gulbenkian (e em complementaridade com estes), numa época em que Portugal estava prestes a ter uma Secretaria de Estado da Cultura separada do Ministério da Educação (posteriormente Ministério da Cultura), que a sua criação deve ser entendida, enquadrando-a na acção maior da Fundação Calouste Gulbenkian, em tempos já de democracia.
Não podendo abordar aqui em detalhe o âmbito de actuação do Serviço área a área, propomos que nos detenhamos um pouco na noção da “falta” tal como esta foi teorizada por Roberto Esposito em Communitas – The Origin and Destiny of The Community para a tentarmos aplicar ao “fazer falta” de que nos fala a fundadora do ACARTE para depois, em conversa, o relacionarmos com Portugal dos Anos Oitenta.
Fazer Falta
Interrogando-se sobre qual seria «a “coisa” que os membros de uma comunidade teriam em comum», Roberto Esposito (ESPOSITO 1998), vai à etimologia de communis que significaria «aquele que partilha um ofício, uma tarefa, uma carga» para daí depreender que communitas seria «a totalidade das pessoas unida não por uma “propriedade” mas precisamente por uma obrigação ou por uma dívida, não por uma adição, mas por uma subtracção: por uma falta, um limite que é configurado como um ónus, ou mesmo por uma modalidade defectiva de quem é “afectado”, por confronto de quem é isento».
Esposito localiza aqui, no contraste entre communitas e immunitas, a tradicional oposição associada com a alternativa entre público e privado. Se communis é o que tem de desempenhar uma tarefa – ou mesmo outorgar uma graça – imune seria o que está dispensado de o fazer, permanecendo assim ingrato. Mas o caminho pela etimologia de communitas «mostra que o munus que a communitas partilha não é uma propriedade ou uma posse». Não seria um ter, mas em contrapartida, «uma dívida, um depósito, uma prenda que tem de ser dada, estabelecendo uma falta. Os sujeitos de uma comunidade estão unidos por uma “obrigação” no sentido em que se diz “eu devo-te uma coisa”, mas não [no sentido em que se diz] “tu deves-me uma coisa”». O que faria com que o comum fosse não «caracterizado pelo que é próprio mas pelo que é impróprio, ou, mais drasticamente ainda, pelo outro; por um esvaziar, seja ele parcial ou completo, da propriedade no seu negativo; removendo o que é especificamente propriedade própria, forçando-o a sair de si, a alterar-se a si».
O que nesta proposta nos interessa para pensar o ACARTE é o questionamento radical de uma noção identitária. Ao localizar a origem do comum não numa propriedade mas numa falta, numa lacuna, Esposito permite-nos pensar produtivamente e em contínuo a comunidade: uma comunidade que não é um dado adquirido, cuja identidade seria necessário estar sempre a afirmar em competição com outras identidades.
Uma ‘Curadoria da Falta’
Ao pautar a sua programação por aquilo a que gostaríamos de chamar uma “curadoria da falta” Madalena Perdigão (e talvez mais ninguém senão ela o pudesse fazer) faz do ACARTE nos anos oitenta um espaço de encontro que, mais do que estar ocupado com a sua identidade, se abre ao que “faz falta”, sendo marcado por esta abertura – e marcando com ela uma época. Talvez por isso a sua acção nestes anos de transformação histórica abrupta – a um tempo só moderna e pós-moderna, clássica e experimental, rural e urbana, para as elites e para as massas, para os adultos e para as crianças – seja sempre tão difícil de definir nos moldes em que teve lugar. Com o seu enfoque no corpo – ao mostrar corpos extremos, pelos quais toda uma tradição da dança pós-moderna americana e da performance art tinha já passado, tradição esta forjada nos tais Anos Sessenta de que Jameson nos fala (Jan Fabre, Anne Teresa de Keersmaeker, Wim Vandekeybus, La Fura dels Baus); ou corpos clássicos, como o de obras teatrais nunca anteriormente representadas no país (Hamlet, Ciclo Retorno à Tragédia); ou corpos vindos de outras culturas e vistos como culturalmente relevantes, cosmopolitas mesmo (Ka-ze-no-Ko, Ciclo Músicas do Mundo, Jornadas de Artes e Letras dos PALOPS); ou pura e simplesmente corpos com vontade de experimentar formas estéticas (Constança Capdeville/Colecviva, Ciclo de música improvisada); ou apenas corpos com uma predisposição geral para se cultivarem ou/e – sobretudo – por mostrar e colocar em diálogo todos estes corpos juntos – a sua acção irá, porventura, de encontro à disjunção que atrás mencionámos. O que a torna, a um tempo só, tão particular e tão explosiva. É que abrir-se ao que falta é, ainda assim, muito diferente de “superar um atraso” ou de “acertar o passo”. O que faz com que este lugar se constitua como um dos lugares dos anos 80, com o tal curto-circuito entre modernidade e pós modernidade de que nos fala Boaventura de Sousa Santos, razão pela qual estamos hoje aqui.
A faltar, o conhecimento aprofundado do que foi o ACARTE pode, quem sabe, fazer-nos sentir menos em falta quando vemos o actual momento em que estamos, 30 anos passados sobre a inauguração deste Centro. E, quem sabe, pode mesmo este Centro de Arte Moderna voltar a ter um peso central nisso.
- Ver a este respeito por exemplo Luís Trindade em Os 3 D’s da Derrota Revolucionária: despolitização, desideologização, desmobilização, disponível aqui ou Pano Cru – a inscrição da memoria do passado revolucionário, disponível aqui.
- A respeito desta ‘tentação nostálgica’ em que pode rapidamente incorrer um olhar sobre “estas e outras (pós) modernices de que Lisboa já sente falta,” como se podia ler no programa do evento, veja-se a segunda parte do texto de António Araújo A Cultura de Direita em Portugal, publicado cerca de um ano depois da intervenção que aqui se publica.
- Para usar uma terminologia Foucauldiana. Ver Foucault A vontade de saber (1976).
- Em Pela Mão de Alice – o social e o político na Pós Modernidade, Boaventura de Sousa Santos (1994), o autor sustenta que o facto de a sociedade portuguesa ser semiperiférica, acarretaria consigo uma “dupla exigência: (1) na formulação de alguns dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o projecto da modernidade não estivesse ainda cumprido ou não tivesse sequer sido posto em causa; (2) na concretização desses objectivos deve partir do princípio (para ela de algum modo mais vital do que para as sociedades centrais) de que o projecto da modernidade está historicamente cumprido e que não há a esperar o que só um novo paradigma pode tornar possível.” (p.84) de onde deduz que: “a sociedade portuguesa tem ainda de cumprir algumas das promessas da modernidade, mas tem de as cumprir à revelia da teoria da modernização. Desta posição decorrem duas implicações principais. A primeira é que as promessas da modernidade a cumprir têm de ser cumpridas em curto-circuito com as promessas emergentes da pós-modernidade. Assim, como atrás referi, as duas importantes promessas da modernidade ainda a cumprir são, por um lado, a resolução dos problemas da distribuição (ou seja, das desigualdades, que deixam largos estratos da população aquém da possibilidade de uma vida decente ou sequer da sobrevivência); por outro lado, a democratização política do sistema político democrático (ou seja, a incorporação tanto quanto autónoma das classes populares no sistema político, o que implica a erradicação do clientelismo, do personalismo, da corrupção e, em geral, da apropriação privatística da actuação do Estado por parte de grupos sociais ou até por parte dos funcionários do Estado). Qualquer dessas promessas deve, no entanto, ser cumprida em conjunção com o cumprimento, igualmente veemente, das promessas da pós-modernidade. Deste modo, a promessa da distribuição deve ser cumprida em conjunção com a promessa da qualidade das formas de vida (da ecologia à paz, da solidariedade internacional à igualdade sexual) e a promessa da democratização política do sistema político deve ser cumprida em conjunção com a ampliação radical do conceito de política, e, consequentemente, com as promessas de democratização radical da vida pessoal e colectiva, do alargamento incessante dos campos de emancipação, as quais podem começar a ser cumpridas precisamente na articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa. Ora, esta conjunção é interdita pelo princípio da modernização, pois, nos seus termos, enquanto não forem resolvidos os problemas da modernidade não faz sentido sequer pôr os problemas da pós-modernidade. Este princípio, que é hoje hegemónico entre nós e que é adoptado tanto pelo Estado como pelos partidos de direita e de esquerda, só poderá conduzir ao bloqueamento da sociedade portuguesa numa semiperiferia crescentemente estúpida.
A segunda implicação do cumprimento da modernidade à revelia da modernização é que é preciso combater a ideia de que tudo o que na sociedade portuguesa é diferente das sociedades centrais é sinal de atraso e deve ser erradicado no processo de desenvolvimento. A contabilidade profunda da sociedade portuguesa está ainda por fazer.
- Ver a este respeito a proposta de Luís Trindade em “Os Excessos de Abril“, in REVISTA História, n.º 65, Abril de 2004.
- De acordo com Gilles Deleuze um devir seria sempre um devir minoritário. Ver a esse respeito Mil Platôs, vol. 4. pág.88.
- Ver a este respeito o website Europeana: “In 1973, the first significant steps towards defining the cultural basis for a European Union were made when the European Economic Community (EEC) signed the ‘Declaration on the European Identity’. This step was the first attempt to create a European awareness. The declaration led to the introduction of several measures to improve the visibility of Europe in the daily lives of the European citizens. A European flag was created, Beethoven’s ‘Ode to Joy’ was chosen as the European anthem and a standardised European passport created. In 1988, a new policy was introduced which focused specifically on using cultural heritage to demonstrate our common history, involving Europe’s architectural and artistic heritage. The EEC sponsored various arts-related craft and restoration projects and helped preserve a number of monuments that played a big role in the European history, such as the Acropolis, the Parthenon and Mount Athos.” In http://penguincompaniontoeu.com/additional_entries/declaration-on-european-identity/, consultado a 16/1/13.
- A esse respeito João Fiadeiro contou-me anedoticamente que assinara o seu contrato com a Europália neste local. Anedótico ou não a verdade é que muitos são os testemunhos sobre a importância formal do Frágil na sociedade Lisboeta da época. Ver a este respeito a imprensa aquando dos 30 anos desta discoteca ou o recente projecto de compilação de fotos da noite nesta discoteca, levado a cabo por Catarina Portas e Tiago Manaia.
- O ensaio de António Araújo A Cultura de Direita em Portugal, publicado cerca de um ano depois da intervenção que aqui se publica, reúne um conjunto notável de informações sobre o ‘dentro’ ao qual aqui se sugere a necessidade de pensar as continuidades com o que (e quem) ficaria então de fora.
- Brochura bilíngue ACARTE 5 anos.
- É desta altura a emergência de termos como “Artes do Corpo”, termo cunhado por António Pinto Ribeiro, que chegou mesmo a trabalhar neste Serviço (Ribeiro 1997).
__
Bibliografia
BARRETO, António (org.) 2006, Fundação Calouste Gulbenkian, Cinquenta Anos 1956-2006, LISBOA, FCG.
BEBIANO, RUI «’Povo pop’, mudança cultural e dissensão», in Como Se Faz Um Povo. Ensaios em História Contemporânea de Portugal, coordenação de José Neves, Lisboa, Tinta-da-China, 2010, pp. 441-454.
Dionísio, Eduarda (1993): Títulos, acções, obrigações – sobre a cultura em Portugal 1984-1994, Edições Salamandra, Lisboa.
FOUCAULT, Michel (1969): Arqueologia do Saber, Almedina 2006, Lisboa
FOUCAULT, Michel (1976), A vontade de saber , Relógio de Água, 1994, Lisboa.
Gilles Deleuze Félix Guattari (1980) MIL PLATÔS. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. 1a Edição- 1997. EDITORA 34, São Paulo.
Grande, Nuno (2009): Arquitecturas da Cultura: Política, Debate, Espaço, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura apresentada ao DARQ/FCTUC, Porto.
JAMESON, FREDERIC (1984): Periodizing the Sixties in Social Text, No. 9/10, Spring – Summer, 1984 The 60’s without Apology, New York.
PERNES, Fernando (2001), Panorama da Cultura Portuguesa Sociedade Porto 2001/Fundação de Serralves, Porto.
RIBEIRO, ANTÓNIO PINTO (2005): Fundação Calouste Gulbenkian, Cinquenta Anos Vol.I – Arte, pág. 371, FCG, Lisboa.
Fontes impressas
FCG (1989): Brochura Serviço Acarte 5 anos de actividades, Arquivo ACARTE.
Electrónicas
ARAÚJO, ANTÓNIO (2014): A Cultura de Direita em Portugal in http://malomil.blogspot.pt/2014/01/a-direita-portuguesa-contemporanea.html, consultado a 21-05-2014.
TRINDADE, LUÍS (2004): Excessos de Abril in http://barnabe.weblog.com.pt/arquivo/098036.html, consultado a 3-04-2011.
Site Oficial da Fundação Calouste Gulbenkian, http://www.gulbenkian.pt/historia consultado em 30/10/11.
Ana Bigotte Vieira
Doutoranda em Estudos Artísticos, Visiting Scholar na NYU-TISCH entre 2009 e 2012. Estudou História Moderna e Contemporânea no ISCTE. Pós-graduação em Ciências da Comunicação: “Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias” (UNL-FCSH). Dramaturgista e investigadora, trabalhou com Gonçalo Amorim, Miguel Castro Caldas e Bruno Bravo, Manuel Henriques, Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, Traduziu Mark Ravenhill, Annibale Ruccello, Spiro Scimone, Pirandello e Giorgio Agamben. Integra o grupo de Teoria e Estética das Artes Performativas do CET (FLUL). Em 2010, recebeu o Dwight Conquergood registration Award na PSi conference #17, Utrecht. É co-curadora de Baldio.